Provavelmente você já deve ter ouvido falar da série da Netflix, “13 reasons why”. Nas últimas semanas houve muitas criticas positivas e negativas a respeito do conteúdo dos episódios da série em questão. Gostei de assistir, creio que os muitos temas explorados pelos episódios são extremamente relevantes para reflexões profundas em muitos âmbitos de nossa sociedade. Não serei um “spoiler”, porém, vou tentar nessas linhas relacionar as temáticas ali projetadas à minha prática profissional como psicólogo clínico e esportivo. Venho trabalhando há doze anos como psicoterapeuta em consultório de Psicologia e com a Psicologia do Esporte em categorias de base e projetos sociais. Nos últimos 3 anos com equipes femininas de basquetebol. Ao longo desse período, ouvi muitos relatos, vi cenas, soube através de colegas de trabalho e amigos de episódios constrangedores envolvendo crianças e jovens no esporte. Por isso afirmo sem receio, as categorias de base no país podem ser ambientes de muitas vulnerabilidades.
Aquele bordão gasto de que o ‘esporte é saúde’, o ‘esporte é formador de caráter’, nem sempre é real, ou melhor, muitas vezes no cotidiano do esporte nas categorias de base a insalubridade e a loucura estão mais presentes do que podemos imaginar.
Separei alguns assuntos que me tocaram onde podemos relacionar com o contexto esportivo. Essa série foi baseada na realidade social americana, porém, também podem ser semelhantes em muitos aspectos a sociedade brasileira.
1 – Sexismo.
Não é novidade que o nosso país é extremamente machista e violento e no ambiente esportivo isso não seria diferente. Em muitos países as mulheres são proibidas de praticar esportes, por questões religiosas e culturais.
No esporte feminino o número de treinadoras que estão a frente das principais categorias é pífio. Quantas são as treinadoras que comandam seleções nacionais nas diversas modalidades de esportes femininos no Brasil? Pouquíssimas, o mesmo ocorre nas categorias de base.
O salário das atletas são muito inferiores ao dos homens na mesma modalidade, a visibilidade no esporte feminino é muito discrepante comparado com os homens que praticam a mesma modalidade esportiva.
A prática de esportes pode ser um grande instrumento de empoderamento feminino, no inicio dos Jogos Olímpicos da era moderna, as mulheres eram proibidas de participar dos eventos esportivos e muitas foram as pioneiras que ao longo do tempo quebraram as barreiras e enfrentaram o status quo. Maria Lenk foi a primeira brasileira e sulamericana a participar dos Jogos Olímpicos em 1932, aos 17 anos. Somente em 2012, as mulheres puderam competir em todas as modalidades olímpicas (isso mesmo, 2012!!! Baita absurdo!!!). O boxe feminino, foi o último a resistir e finalmente foi incluído nos Jogos de Londres.
2 – Alienação parental.
Alguns pais projetam nos filhos suas frustrações, seus desejos irrealizados, a fantasia de que seus filhos sendo atletas serão ricos e poderão ser a salvação da família financeiramente.
A pressão dos pais por resultados e performances muitas vezes podem ser irrealistas. Alguns pais querem dar palpites nos métodos de treinamento dos filhos, passando por cima dos treinadores. Outros provocam brigas com torcedores adversários. Pregam o fair-play mas praticam a intolerância. Humilham os filhos ou outros jovens publicamente. Achando que por estarem na torcida, vale tudo. Afinal, desde ‘pequenos eles tem de se acostumar com a pressão para crescer’, ideias falaciosas como essas são verdadeiras aberrações corriqueiras no ambiente esportivo e implode a autoestima e a confiança de jovens atletas.
Já presenciei pais se estapearem nas arquibancadas enquanto seus filhos solicitavam que os mesmos fossem retirados do ambiente para que pudessem terminar uma partida de tênis de um campeonato paulista de garotos de 14 anos. No mundial de natação em 2007 na Austrália, o mundo ficou estarrecido com o que aconteceu à nadadora ucraniana, Kateryna Zubkova, que foi filmada sendo agredida pelo próprio pai que também era seu treinador, por não ter conseguido se classificar para as semifinais naquele mundial.
Parece um clichê banal, mas os pais devem apenas apoiar seus filhos. O que eles podem cobrar é por comprometimento e respeito. Pressioná-los por resultados ou desempenho jamais! Até por que, os jovens atletas não estão prontos nem fisicamente e nem tão pouco emocionalmente e as competições já exerce forte pressão sobre eles.
3 – Assedio moral.
O assedio moral de todos os tipos e níveis está presente em toda parte de nossas categorias de base. Geralmente é exercido por treinadores, membros da comissão técnica, dirigentes, empresários e até por “psicólogos” e pais.
Na realidade, o assédio moral esconde a incompetência do profissional que se relaciona com o atleta. Muitas vezes se confunde, exigência, disciplina com falta de educação, rigidez e autoritarismo. É frequente em treinos e competições de todas as idades, humilhações, maus tratos, deboche, xingamentos, ameaças, punições físicas e por incrível que pareça até assédio sexual (mais comum às meninas, mas não raro aos garotos).
O papel de um treinador ou de qualquer outro mediador nas categorias de base deveria ser acima de tudo de um educador. Geralmente, falta formação adequada para tal e a insegurança por resultados acaba influenciando brutalmente nesse sentido. O imediatismo por vitórias a qualquer custo é a premissa ao invés da formação e da paciência no desenvolvimento atlético em longo prazo.
Parte da mídia tem responsabilidade sobre a perpetuação do preconceito, assedio moral e sexual contra as mulheres no esporte. Ao elegerem suas ‘musas’ esportivas, as curvas das atletas, a celulite da tenista tal, o pneuzinho da fulana ao invés de exacerbar o desempenho atlético das mulheres e suas conquistas. Muitas vezes o conforto dos uniformes das atletas são deixados em segundo plano em detrimento da sensualidade do mesmo. Sem ao menos ouví-las nesse aspecto.
4 – Violência.
“Lei Maria da Penha não é exercida na maioria dos casos de violência contra as mulheres.”
“Pobres e negros são mais vulneráveis à violência no Brasil.”
“O Brasil é o país que mais comete assassinatos contras pessoas GLBT.”
“22% das brasileiras sofreram ofensa verbal no ano passado, um total de 12 milhões de mulheres. Além disso, 10% das mulheres sofreram ameaça de violência física, 8% sofreram ofensa sexual, 4% receberam ameaça com faca ou arma de fogo. E ainda: 3% ou 1,4 milhões de mulheres sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento e 1% levou pelo menos um tiro.”
“Segundo dados do Ipea (2014), 70% da vítimas de estupros no Brasil são crianças ou adolescentes.”
“De acordo com os dados mais recentes, em 2014 o Brasil tinha um caso de estupro notificado a cada 11 minutos.”
“58,5% concordam total ou parcialmente com a afirmação que “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.
” Mais de 50 mil assassinatos ocorrem anualmente no país”.
As frases acima são referentes à trechos ou manchetes de jornais de grande circulação. Infelizmente, a violência é alarmante, convivemos de tal forma com a violência que ela se banalizou e muitas vezes ficamos indiferentes e sem reação.
A violência contra as mulheres é comum no Brasil. Certamente no esporte não é diferente. Provavelmente os casos não vêm a tona por medo de retaliação e represália. Os casos de violência contra as mulheres são pouco investigados, alguns até são menosprezados pelas autoridades públicas.
A violência sexual acontece também com os meninos, recentemente no futebol inglês ex-jogadores denunciaram que foram vitimas de abuso sexual pelo seu treinador em seus clubes de formação. Muito provavelmente casos desse tipo acontecem em todo o mundo. As pessoas não relatam por receios, principalmente, os homens. O machismo ainda é um enorme empecilho.
A pressão exercida pelas torcidas organizadas no futebol é mais um exemplo, há inúmeros casos de agressão e morte de torcedores adversários, de intimidação de atletas e treinadores quando não desempenham o esperado. Na maioria das vezes os clubes são cúmplices desses comportamentos, de alguma forma eles compactuam com esse tipo de relação, ajudando financeiramente ou deixando com que membros dessas facções participem ativamente do cotidiano do clube e tenham acesso aos atletas.
O esporte é também retrato da nossa sociedade. Esporte é política e a política em nosso país é extremamente corrupta e violenta. Negando direitos, negligenciando acessos. O esporte é um direito previsto em lei, está em nossa constituição e no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) com dispositivos exclusivos relacionados à políticas públicas. Muito pouco garantidos para falarmos a verdade.
5 – Suicídio.
Angustias, medos, baixa estima, pouca confiança, pressão (interna e externa), pouco espaço para reflexão (contato social e cultural empobrecido, isolamento). Exacerbação da competição predatória (‘loosers x winners’). Estrresse, Burnout (abandono precoce pode também ser um fator para culminar em ideações suicidas). Depressão (em decorrência de pedofilia ou troca de favores sexuais, privações e restrições diversas). Muitos outros aspectos emocionais e comportamentais podem contribuir com uma atitude extrema de suicido. Todos esses fatores de vulnerabilidade relacionados acima existem nas categorias de base e podem ser potencializados casos não seja olhado com cuidado e respeito.
A história relatada no documentário inglês “Forbidden Games“, conta a trajetória dos irmãos John e Justin Fashanu, no qual o último se suicidou aos 37 anos após não conseguir lidar com a pressão de ter assumido sua orientação sexual, num esporte extremamente homofóbico como o futebol.
6 – Prevenção e promoção da saúde mental.
É papel do psicólogo seja em qual contexto estiver, zelar pela prevenção e promoção da saúde mental das pessoas que irá trabalhar. No contexto esportivo isso deveria ser uma premissa acima de qualquer outro objetivo por performance. No esporte ultrapassar os limites físicos e psicológicos, é “normal”, esperado e reforçado culturalmente. Me assusta os clubes recorrerem a um tipo de psicologia apenas para motivar, aplicar testes psicométricos e ensinar técnicas de preparação mental para simplesmente, turbinar o desempenho atlético. O trabalho do psicólogo do esporte vai muito além disso, principalmente, nas categorias de base, onde a grande maioria não irá se tornar atleta de alto rendimento adulto.
Recentemente a categoria de psicólogos se animou com o “Projeto de Lei do Senado (PLS) 13/2012, em tramitação no Senado, que pretende obrigar o cuidado com a saúde mental dos atletas profissionais, por meio de apoio de psicólogos.” Pode ser um passo importante, porém, caberia, fortalecer ainda mais a Lei Pelé (Lei 9.615/1998), onde já obriga que clubes garantam assistência psicológica a atletas em formação. Quando sabemos que isso ainda está longe da realidade nas categorias de base nas diferentes modalidades esportivas em todo os país.
Auxiliar no desenvolvimento da autoestima, da autoconfiança, da tolerância à frustração, no crescimento pessoal para além do esporte. Esse é um dos papéis que nós psicólogos podemos ajudar a desenvolver nas pessoas e nas equipes de base, onde creio ser fundamental a nossa presença para contribuir com a saúde mental e emocional dos envolvidos nesse contexto ajudando-os no seu autoconhecimento.
Referencias:
http://exame.abril.com.br/brasil/os-numeros-da-violencia-contra-mulheres-no-brasil/
http://emais.estadao.com.br/blogs/daniel-martins-de-barros/jovens-nao-precisam-de-13-razoes-para-se-matar-basta-uma/
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36401054
http://emais.estadao.com.br/blogs/nana-soares/precisamos-falar-sobre-estupros-em-ambientes-universitarios/
http://site.cfp.org.br/senado-aprova-pl-que-dispoe-sobre-assistencia-psicologica-atleta/
http://espnw.espn.uol.com.br/primeira-mulher-sul-americana-a-participar-dos-jogos-olimpicos-maria-lenk-fez-historia-dentro-e-fora-das-piscinas/
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Abraços…
Até!!!
“Se nos calamos, somos coniventes. Se denunciamos, somos alienadoras”
Alienação parental é teoria que alimenta misoginia e pedofilia, dois males que já eram muito difíceis de combater num país como o Brasil!
https://maesnaluta.org/artigo/maes-denunciam-uso-da-lei-de-alienacao-parental-para-silenciar-relatos-de-abuso-sexual-de-criancas
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