Esse texto contém muito spoiler de documentário envolvendo a saúde mental de atletas, principalmente, o filme da HBO, “O Peso do Ouro” (2021). De antemão já peço desculpas aos leitores caso não tenham assistido. Porém, ao assistir fiquei muito tocado com o sofrimento demonstrado pelos atletas e resolvi refletir e compartilhar por aqui sobre esse conteúdo.
Têm se falado muito a respeito da saúde mental no esporte nos últimos anos, principalmente, durante o auge da pandemia de covid-19 e do episódio nos Jogos Olímpicos de Tóquio, envolvendo a ginasta, Simone Biles.
As frases abaixo foram retiras das falas e depoimentos de atletas olímpicos americanos que participaram do documentário, “O Peso do Ouro” (HBO – 2021). Chama a atenção que entre eles está, Michael Phelps, simplesmente, o maior vencedor olímpico de todos os tempos. Ele é um dos diretores do filme e também o narrador. Selecionei algumas das frases mais marcantes para mim para comentar:
1 –
“Eu fui motivado pelo medo do fracasso que são motivados pela vontade de vencer, de ser o campeão, fui motivado simplesmente por achar que não era adequado. Eu não era o melhor atleta no gelo, não tinha o melhor talento geneticamente, devido a minha obsessão em não ser bom o suficiente. Eu vivi essa vida durante 15 anos é difícil de entender a magnitude de quando você fracassa em uma olímpiada.“
Imaginem através desse relato, o nível de estresse e ansiedade que esse atleta, provavelmente, passou durante o período de sua carreira. Ele não pode ser considerado um perdedor por não ter vencido uma competição olímpica. Não é justo ser rotulado como fracassado.
2 –
“De fora, poderiam dizer: ‘que terrível, você é um atleta’, as pessoas têm problemas mais graves. E isso é verdade. Mas para os atletas olímpicos essa é a vida deles. É isso que define quem você é.“
“Pode imaginar? Digamos que você se divorcie, alguém diz para você: ‘sinto muito, e eu não tinha ninguém para me ajudar a passar por isso. Depois das olímpiadas, as portas da vila se fecham e isso é tudo. A mídia vai embora. Toda a exposição termina.“
“Antes dos jogos de 2008, me lembro de um treinador do time de mergulho. Foi minha primeira vez nas olimpíadas, algo que vinha sonhando desde que tinhas 7 anos, ele me disse, “não fique surpreso depois das olímpiadas com a tristeza pós-olímpica”.
Não dá para separar categoricamente conteúdos que são da vida pessoal e o que é da vivência no esporte, muitas vezes esses acontecimentos podem contribuir negativamente na performance esportiva e sem respaldo psicológico e emocional a tendência é ser mais complicado de lidar com tudo isso. Os atletas tem o direito de serem vulneráveis e de serem validados nesse sentido.
3 –
“Com quem eu poderia ter conversado, se eu poderia ter feito algo. Bem existem vários motivos. Provavelmente o maior deles está conectado com o que nos levou ao topo em primeiro lugar. Nossa convicção de que podemos nos tornar invencíveis, se nos esforçarmos o suficiente. Nossa convicção de que jamais precisaríamos de ajuda. Nosso medo de parecermos fracos e vulneráveis. O estima de ter problemas de saúde mental é uma questão que atravessa toda a sociedade. É difícil falar sobre essas questões ou reconhecer que elas existem. Os atletas são definitivamente, um grupo que quer manter sua dor escondida.“
“Os atletas geralmente não recebem ajuda com os casos de depressão porque eles não podem admitir que estão tendo problemas. Isso é fundamentalmente contrário a ser um competidor. Isso é uma guerra. É um jogo de estratégia. É um jogo de manobras e posturas. Você precisa mostrar para o mundo que é forte. Precisa mostrar para seus adversários que você é forte. Então se você admitir que tem transtornos mentais isso quebra a fachada de tentar mostrar ao mundo.”
“Nos atletas não conversamos sobre as nossas fraquezas. Nos escondemos qualquer coisa especialmente em um ambiente de equipes, porque você não quer que ninguém saiba pelo o que você está passando.”
“A coisa mais difícil que eu tive que lidar foi que, visto de fora, você tem tudo.”
“Eles dizem que mantem os atletas felizes e saudáveis, mas a única ajuda que eles oferecem é física. O resto é um problema pessoal seu.”
“Acho que hoje posso dizer honestamente, revendo a minha carreira, acho que ninguém nunca se importou. Nunca alguém nos perguntou se estávamos bem. Contando que seu desempenho fosse bom, nada mais importava.”
O estigma social, o machismo e a associação de vulnerabilidade ao lidar com questões emocionais mostra o quanto ainda precisamos caminhar para desmistificar que cuidar da saúde mental é tão essencial quanto cuidar da saúde física no esporte ou em qualquer outro contexto. Facilitar o acesso a profissionais capacitados é fundamental para que isso ocorra e principalmente, para que o sofrimento psicológico seja amenizado. Que essas pessoas possam se reconhecer e ser reconhecidas como humanas.
4-
“Não pensei se poderiam me ajudar com a preparação psicológica. Eles fizeram um bom trabalho me ajudando a permanecer mentalmente forte no meu esporte, mas nunca se preocuparam em como eu poderia manter minha força mental fora do esporte.
O problema é que, sem um entendimento completo de quem poderia nos ajudar. É difícil encontrar a pessoa certa. Porque parece que os psicólogos e psicólogos esportivos todos querem trabalhar com um atleta olímpico e receber o crédito pelo desempenho, mas quando se trata dos problemas familiares ou de saúde mental não existe ajuda.“
São muito fortes esses ressentimentos acima. A vaidade também, pode nos atingir, quando priorizamos a performance atlética diante das demandas de um ser humano que têm como atleta um de seus papéis na vida. No meu entender, promover a saúde mental e o bem estar psicológico é o principal objetivo de um profissional da psicologia. É um preceito previsto no nosso código de ética profissional. Um psicólogo que é negligente com isso e só quer sair na foto com atletas vencedores, está fazendo um péssimo trabalho e desvalorizando toda uma categoria. Lamentável. Nosso trabalho é realizado nos bastidores muitas vezes ele não tem de estar necessariamente nos holofotes. Alta performance no esporte só é possível com uma saúde mental equilibrada, ambas andam juntas.
5 –
“Não é natural se aposentar quando você tem 20 ou 30 anos. O que farei agora? Quem eu sou? E a verdade é que não existem muitos programas que ajudem os atletas a lidarem com as emoções geradas por essa transição. O que sobra para um atleta olímpico depois que sua carreira termina? Acho que não existe nada.”
Esse desabafo é do Michael Phelps, ilustra que trabalhar a transição de carreira é fundamental para qualquer atleta. Não é uma tarefa simples, é necessário tempo para esse processo. Muitos atletas deprimem, podem apresentar problemas graves de saúde mental após o encerramento de suas carreiras, por vários motivos, um deles a perda de identidade.
Apontamentos
Os relatos apresentados nos parágrafos acima são fenômenos de uma realidade esportiva, cultural e social diferente da que temos no nosso país. Entretanto, pode nos fazer pensar em vários aspectos.
Vale ser vencedor a qualquer custo? Em detrimento da para a saúde física e emocional? Com sequelas para toda a vida?
Se na nação com mais estrutura esportiva como é os Estados Unidos, lá os atletas têm dificuldades no acesso a profissionais que trabalham com saúde mental no esporte. Imagine em outros locais menos desenvolvidos? Imagine no nosso país? Será que aqui no Brasil nossos atletas conseguem ter acesso? Os que possuem condições fazem adequadamente? A resposta é negativa, a grande maioria dos atletas não contam com psicólogos nos seus clubes ou times. O acesso via federações ou COB também é limitado. O serviço público para acessar esse tipo de demanda também é escasso (todos sabemos disso, das dificuldades do SUS com relação ao acesso a saúde mental). Os atletas que podem pagar por esse serviço nem sempre o fazem. A demanda é enorme, os profissionais para absorver essa demanda existe. Falta oferta de trabalho, ou seja, investimentos e oportunidades.
Nos últimos anos o COI (Comitê Olímpico Internacional) e a FIFA aumentaram a preocupação com a saúde mental de atletas e treinadores. Tendo em vista os inúmeros casos expostos nas mídias ou divulgado por eles próprios. Essas organizações estão desenvolvendo pesquisas, protocolos científicos e materiais muito importantes sobre toda a temática da saúde mental e como isso influencia no esporte. A contribuição desses estudos na última década tem sido muito relevantes. Porém, ainda existe uma distancia entre o que a ciência produz de conhecimento e a impacto disso na vida das pessoas, nos campos, quadras, piscinas e ginásios.
Outro apontamento importante que vale a pena trazer a tona nesse contexto. Me soa estranho, por exemplo, o médico chefe, responsável pela área de saúde mental no COI, órgão máximo do esporte olímpico, ser um ortopedista ao invés de um psiquiatra. Nada contra os ortopedistas e médicos do esporte. Concordo que o que ele e seu grupo de apoio estão realizando é muito relevante e pioneiro. Entretanto, não creio que um médico psiquiatra muito menos um psicólogo, por exemplo, seria o responsável por coordenar a área de reabilitação e medicina esportiva no Comitê Olímpico Internacional. Reflito sobre esse aspecto, para percebemos que as questões envolvendo a saúde mental no esporte ainda necessitam de maior respaldo por especialistas, inclusive, nas instituições que deveriam dar o exemplo ao mundo.
O trabalho da Psicologia é investimento no fator humano
Os clubes, os times, as federações e as confederações por todo o país, infelizmente, não investem como deveriam na saúde mental e preparação psicológica de seus atletas, treinadores e demais membros de comissão técnica. Essas instituições não desenvolvem adequadamente o acesso a esses serviços.
Garantir acesso a psicologia do esporte a saúde mental não é gasto. É investimento, nas pessoas, que são o principal ativo e patrimônio de clubes e seleções. Aquelas que com o suor de seu trabalho trazem direta e indiretamente, dividendos e lucros a essas instituições. Precisam ser melhor cuidadas.
Atletas com melhor preparação psicológica e emocional, podem ter mais condições de atingir a altíssima performance. Poderiam se concentrar melhor, ter mais foco, lidar melhor com erros, frustrações e distrações. Atletas com bom preparo mental, tendem a diminuir as lesões esportivas, já que algumas estão relacionados a aspectos psicológicos. Também, conseguiriam lidar melhor com o desgaste emocional do estresse e ansiedade competitiva, assim como, entender como as pressões internas e externas lhes atingem diminuindo a performance, por exemplo.
O trabalho da psicologia do esporte poderia auxiliar os treinadores a ter menos desgaste emocional, a equilibrar e delegar funções com mais respaldo. Poderia ajudar na coesão de grupo e no aperfeiçoamento de lideranças. Auxiliar a minimizar tensões internas contribuindo com uma comunicação mais efetiva e produtiva. Os exemplos são muitos, os ganhos são enormes.
Os benefícios de promover a Psicologia do Esporte nas instituições esportivas são palpáveis, científicos e robustos. Queremos que o Esporte seja um ambiente mais saudável a todos os envolvidos.
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Abraços!!!
Até …