Qualquer trabalho nesses tempos de isolamento social tem se transformado. Não é diferente na atuação em psicologia do esporte. Vou compartilhar com vocês minha experiência profissional nas últimas 6 semanas.
Venho a 6 anos trabalhando com categorias de base de basquete feminino num clube da região da grande São Paulo. Tenho o privilégio de estar numa instituição que prestigia o trabalho do psicólogo do esporte por mais de 20 anos ininterruptamente. Contudo, é natural aos profissionais de diferentes áreas a presença da psicologia no cotidiano dessa instituição. Sendo assim, construí uma relação profissional de vínculo e muita troca com as comissões técnicas em que atuo. Digo isso, não para me vangloriar mas para contextualizar a minha atuação profissional no momento em que estamos vivendo.
Antes da pandemia minha presença era frequente nos treinos e competições das categorias. Assim como, horários reservados especificamente para o trabalho psicológico com os grupos de atletas, individualmente e com as comissões técnicas.
Isolamento social
Chegou o momento de nos isolarmos. Nos grupos de trocas de mensagens reforçamos diariamente nas primeiras duas semanas, dicas de saúde, higiene, algumas instruções para praticar técnicas meditativas e imaginativas, algumas dicas de leitura para passar o tempo. Todos nós (adultos e jovens) se adaptando a essa nova realidade. Particularmente, senti o impacto do isolamento social nessas duas primeiras semanas. Tive pequenas oscilações de humor com o passar dos dias foram diluindo e tenho conseguido me adaptar a nova experiência.
Um dos treinadores com que trabalho, sugeriu que pudéssemos reunir a comissão técnica para conversar. Nessa reunião, uma de suas sugestões foi de que fizéssemos com as atletas reuniões virtuais via aplicativos de comunicação em videoconferência. Inicialmente, iriamos ‘apenas’ conversar para saber como estavam lidando emocionalmente com esse momento. O feedback delas após o primeiro encontro foi muito positivo e decidimos realizar diariamente reuniões virtuais durante aproximadamente 1 hora e 30 minutos.
Fizemos enquetes para saber quais temas e assuntos elas gostariam que fosse abordado ao longo do tempo. Durante esse período conversamos sobre:
– História do basquete no Brasil;
– Principais atletas da modalidade;
– História do clube e grandes personalidades;
– Dicas de higiene e autocuidado para não se contaminar com covid-19;
– Saúde mental e fortaleza mental em atletas;
– Discussões de filmes e séries;
– Comunicação não violenta;
– Inteligência emocional
– Higiene do sono;
– Como melhorar a relação com os pais nesses tempos de confinamento;
– A importância de manter uma rotina e organização;
– Aquecimento cognitivo; etc.
O basquete tem sido tema secundário para o nosso grupo, nosso foco é mais educativo permeando a modalidade.
As atletas continuam mantendo minimamente as atividades físicas e técnicas para a manutenção do condicionamento. Certamente, não como um treinamento visando performance, mas como um estímulo para a condição de saúde e capacidades atléticas.
Adolescência e vulnerabilidade
O lema principal dos órgãos sanitários nesse momento é, “Fique em Casa”. Nada simples para os adultos, mais difícil para os adolescentes. Nessa fase da vida as relações sociais são muito fortalecidas e imprescindíveis para o desenvolvimento emocional. Pensando nas jovens atletas, eles ficam muito pouco tempo ‘em casa’. A grande maioria estuda, depois vão treinar e voltam para casa no final do dia. Quem reside em alojamento de clubes, ‘ir para casa’ é esporádico. Esse aspecto do ‘ficar em casa’ ou ‘voltar para casa’ pode ser um complicador para muitos jovens com esse perfil. Burlar as regras, comportamento típico dessa fase da vida, hoje é muito arriscado e deve ser abertamente conversado entre responsáveis e educadores para ser evitado.
Casos mais complexos também são esperados que ocorram. A saúde mental e emocional está em evidencia nesse momento. Crises de estresse agudo, de ansiedade, crises de pânico, sintomas depressivos, são comportamentos que podemos sentir e algumas pessoas não estão sabendo lidar com isso. Muita angustia, compulsão alimentar, irritabilidade, também pode ser uma tendência nesse momento. Fortes oscilações de humor tem ocorrido em alta frequência, na população de modo geral.
Outras questões de vulnerabilidade social que já existiam, também estão sendo expostas nesse momento. Por exemplo, quando o ambiente familiar não é protetivo? A residência é insalubre como muitas casas em comunidade carentes? Ou quando a relação entre os pais ou membros da família é violenta? Quando o esporte aparentemente é o único recurso para ascensão social? Ou o jovem atleta é o arrimo de família e não sabe se continuará recebendo? São necessidades muito complexas mas que acabam aparecendo num grupo de jovens atletas de origens tão diversas e podem ser gatilhos para que haja prejuízo ainda maior na saúde mental, no autocuidado ou no isolamento.
Reforçar o poder da comunicação dos sentimentos negativos entre os jovens e com adultos de confiança é algo necessário nessa ocasião. É importante despertar o espírito comunitário e solidário mesmo em distancia. Valorizar as boas amizades e companheirismo para evitar a solidão pode ser um remédio para quem se sente entediado. Nesse sentido conversar ao telefone e vídeo são mais efetivos do que teclar em aplicativos de mensagens.
O papel da Psicologia do Esporte
A Psicologia do Esporte também está relacionada ao autoconhecimento, possui ferramentas para o empoderamento pessoal. Um bom desenvolvimento psicológico no esporte vai além do desempenho esportivo.
Como iremos retomar as atividades em clubes? E as competições como serão? Perguntas que ainda não temos respostas. Provavelmente todos os envolvidos com o ambiente esportivo terão de mudar hábitos, adquirir e aprender novos comportamentos visando a prevenção da saúde, principalmente. Com certeza, teremos de obedecer a visão dos cientistas e especialistas de como devemos nos comportar quando tudo isso acabar. Internacionalmente algumas atividades já estão reiniciando e poderemos nos espelhar nos melhores exemplos e adaptar a nossa realidade.
Não está sendo fácil, mas viver nessa quarentena pode ser uma oportunidade de olharmos para o nosso mundo interno com mais cuidado e carinho. Esse momento pode nos trazer uma oportunidade de autotransformação e resiliência. Valorizar e preservar a vida, nosso bem maior. Nós seres humanos temos uma grande capacidade interna de nos adaptarmos, é da nossa natureza nos transformar nas adversidades. Sigamos em frente!
Referencias:
Bate-papo, “Psicologia do Esporte em tempos de pandemia”, promovido pela Federação Paulista de Basquete
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Abraços!!!
Até …
Parabéns pela iniciativa em trazer informações sobre a Psicologia do Esporte, área ainda pouco conhecida no Brasil e em expansão. 😉