Casos de abuso sexual no esporte vieram a tona recentemente no Brasil e no mundo. Isso mostra o quanto o ambiente esportivo pode se tornar um local de vulnerabilidade, principalmente, nas categorias de base. As vítimas estão se encorajando, expondo angustias para tentar amenizar suas dores e quem sabe prevenir casos similares no futuro.
Os casos das atletas da seleção feminina de ginástica artística americana deu inicio a inúmeras queixas relativas a abuso sexual (156 mulheres denunciaram o médico Larry Nassar), em seleções, clubes e universidades nos Estados Unidos e consequentemente contribuiu para uma enxurrada de outras denuncias mundo a fora. No Brasil, um dos casos mais conhecidos é o da nadadora Joanna Maranhão, onde corajosamente revelou que sofreu abuso de seu treinador quando era criança. Recentemente, o ex-técnico da seleção masculina de ginástica (Fernando de Carvalho Lopes) foi acusado de cometer abusos sexuais durante anos a diversos atletas em locais onde trabalhou.
Outro ídolo do esporte, Diego Hipolyto, comentou sobre o bullying e humilhações vivenciados no inicio de sua carreira. Alguns trotes em times e seleções como um rito de entrada de novos membros são taxados como ‘brincadeiras’, na realidade são humilhações descabidas e desrespeito a dignidade da pessoa. Vão desde agressões físicas ou psicológicas, exposições indevidas com consentimento imposto ou forçado, muitas vezes com a complacência e até reforçados por alguns membros de comissão técnica. É considerado ‘normal’, principalmente, em modalidades masculinas humilhações públicas e bullying. Faz parte da cultura machista do mundo masculino. A banalização desse tipo de comportamento é tamanha que inclusive a grande maioria das vítimas aceitam as ‘brincadeiras’ sem questionar e compreender do que se trata.
A sociedade brasileira é uma das mais violentas do mundo, segundo dados recentes mais de 60 mil pessoas morrem assassinadas por ano no país. Pobres e negros são mais vulneráveis à violência. O Brasil está em quinto lugar em feminicídio, mais de 500 mil mulheres são violentadas e estupradas anualmente por aqui. A Lei Maria da Penha não é exercida na maioria dos casos de violência contra as mulheres, alguns até são menosprezados pelas autoridades públicas. O Brasil é o país que mais comete assassinatos contra LGBT.
Infelizmente, a violência é alarmante, convivemos de tal forma com ela que se banalizou, muitas vezes ficamos indiferentes e sem reação. Certamente o esporte não está imune a isso. Provavelmente mais episódios de abuso sexual e violência em geral não vêm a tona por medo de retaliação e represália. O esporte está intimamente relacionado à política e ambos em nosso país são extremamente corruptos. Negando direitos, negligenciando acessos. O esporte é um direito previsto em lei, está em nossa Constituição e no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) com dispositivos exclusivos relacionados as políticas públicas, muito pouco garantidos na prática.
A violência sexual acontece também com os meninos, recentemente no futebol inglês ex-jogadores denunciaram que foram vitimas de abuso sexual pelo seu treinador em seus clubes de formação. Muito provavelmente casos desse tipo acontecem em todo o mundo. As pessoas não relatam por receios, principalmente, os homens. O machismo ainda é um enorme empecilho. No futebol brasileiro recentemente houve relatos semelhantes. O ex-goleiro do Bragantino, Alexandre Montrinas, vêm fazendo um trabalho de prevenção ao abuso sexual no esporte, do qual também foi vítima. Esse episódio trouxe alguma repercussão no país, além disso, outros atletas de base do Santos FC relataram terem sofrido abuso sexual. O caso está sob investigação judicial.
Segue abaixo, depoimentos de atletas americanos que sofreram abuso sexual (retirado de texto do El País):
“Eu leio na internet as pessoas dizendo: ‘Por que eles não deram um soco na cara dele?’ Eu não sou uma pessoa violenta. Eu francamente sou uma pessoa calma. Não foi tão fácil assim e, vendo em retrospectiva, eu não tinha dado um soco nele. Eu não detesto esse cara. Ele tinha seus demônios.” Mas, embora muitos deles tenham tido sucesso em enterrar esses abusos, há consequências persistentes. Mulvin se recusa a ver médicos homens. Um ex-tenista da Universidade Estadual de Ohio demorou oito meses para procurar tratamento para um nódulo doloroso dos testículos, segundo documentos da ação contra a universidade.”
Vale lembrar que o assédio, a violência e a intolerância sexual estão presentes inclusive, para quem trabalha e assiste eventos esportivos, como aconteceu na Copa do Mundo da Russia. Torcedores, brasileiros entre eles, filmaram seus assédios as mulheres, jovens e crianças russas. Algumas jornalistas e repórteres em seu ambiente de trabalho também são frequentemente assediadas. Cantos homofobias são comuns nos estádios do país. Tais comportamentos expressam como uma parcela da sociedade brasileira lida com esses aspectos.
Aquele bordão gasto de que o ‘esporte é saúde’, o ‘esporte é formador de caráter’, nem sempre é real, ou melhor, muitas vezes no cotidiano do esporte a insalubridade está mais presente do que podemos imaginar.
Quase sempre os sinais e os comportamentos de quem sofreu violência sexual não são claros, por isso, a importância do psicólogo no esporte, no cotidiano das atividades, por sua formação ter essa especificidade voltada a compreender o comportamento humano. Esses aspectos podem ser confundidos com mau humor adolescente, birra em crianças, podem ser expressados de outra maneira não verbalmente.
Ao meu ver o papel do psicólogo do esporte e do serviço social são fundamentais nas categorias de base de qualquer equipe esportiva, nem sempre, os treinadores e demais profissionais de comissão técnica conseguem detectar certos traços de comportamentos em crianças e adolescentes que foram abusados. Nem sempre ou quase nunca quem sofreu conseguirá se expor e comunicar o assunto com naturalidade, cada pessoa reage de uma maneira, algumas pessoas, podem ficar agressivas, outras irritadas, outras deprimem, outras comem em excesso, enfim, não tem regras absolutas e roteiro especifico para casos dessa natureza. O olhar e a percepção de quem trabalha no cotidiano e compreende essas nuances será imprescindível para detecção, prevenção e condução do caso, se ocorrer.
É papel do psicólogo seja em qual contexto estiver, zelar pela prevenção e promoção da saúde mental das pessoas que irá trabalhar. No contexto esportivo isso deveria ser uma premissa acima de qualquer outro objetivo por performance. No esporte ultrapassar os limites físicos e psicológicos, é “normal”, esperado e reforçado culturalmente. Me assusta os clubes recorrerem a um tipo de psicologia apenas para motivar, aplicar testes psicométricos e ensinar técnicas de preparação mental para simplesmente turbinar o desempenho atlético. O trabalho do psicólogo do esporte vai muito além disso, principalmente, nas categorias de base, onde a grande maioria não irá se tornar atleta de alto rendimento quando adultos.
Auxiliar no desenvolvimento da autoestima, da autoconfiança, da tolerância à frustração, no crescimento pessoal para a vida além do esporte. Esse é um dos papéis que nós psicólogos podemos ajudar a desenvolver nas pessoas e nas equipes de base, onde creio ser fundamental a nossa presença para contribuir com a saúde mental e emocional dos envolvidos nesse contexto ajudando-os em seu autodesenvolvimento.
Referências:
https://psicologia.aprimore.com.br/blog/psicoterapia-para-mulheres-vitimas-de-violencia
Vulnerabilidades nas categorias de base esportivas: entenda como isso pode ser negativo.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/17/deportes/1526574323_277181.html
http://anamariaiencarelli.blogspot.com/
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Abraços!!!
Até …
Olá
O seu artigo é muito bom,. Gostei muito, inclusive porque releva algo triste e revoltante no esporte, e que, graças a coragem de muitos os casos de abusos sexuais e de bullying sugem aos montes. E deve buscar formas para não somente combater este tipo de perversidade mas ajudar as vítimas, que buscaram a prática esportiva como uma forma de mudar a vida.
Acontece que tem um outro caso não mencionado em seu texto e que vale a pena citar, que foi o caso de uma atleta paraolímpica de basquete que suicidou após praticarem bullying contra ela, e o.caso, inicialmente foi tratado como apenas uma “brincadeira”, e que só foi levado a sério depois da denúncia contra o ex técnico da seleção masculina de ginástica (Fernando de Carvalho Lopes) .
https://olharolimpico.blogosfera.uol.com.br/2018/06/13/escandalo-sexual-tem-atletas-afastadas-e-suicidio-no-basquete-paraolimpico/
Abraços