Carta de defesa da Prof. Katia Rubio

OBS: O Blog posta na integra a carta de defesa da Prof. Katia Rubio que está sendo processada pelo COB. Vamos nos manifestar contra a censura e a favor da democracia !!!

PELO DIREITO OLÍMPICO DE SE ESTUDAR E PESQUISAR ESTUDOS OLÍMPICOS NO BRASIL

 

Profa. Dra. Katia Rubio

Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo

Desde que ingressei na Universidade de São Paulo como docente fui posta à prova em um processo seletivo, três concursos, além das bancas de mestrado, doutorado e livre docência. Essa é a razão de ser da vida acadêmica. Sem contar na participação dos inúmeros editais que concederam auxílios ou bolsas aos projetos de pesquisa que desenvolvo. Com isso quero dizer que estou acostumada a ser avaliada e julgada de forma quase que ininterrupta há muitos anos.

Penso que aceitei o desafio da vida acadêmica porque fui criada e educada dentro do esporte. Aprendi ao longo da minha vida esportiva que o sucesso é o resultado de um processo que envolve dedicação, disciplina, determinação e que perder e ganhar faz parte do jogo. Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar, já cantava Elis. Tive a felicidade de contar com excelentes professores e técnicos que apontavam a todo instante a fundamentação ética dessa atividade, sem necessariamente evocar essas palavras.

Talvez venha daí o meu compromisso como pesquisadora e educadora: tive grandes mestres que adotaram uma pedagogia mimética e me inspiraram a fazer o mesmo.

Quando me dediquei ao estudo, ensino e pesquisa da Psicologia do Esporte e dos Estudos Olímpicos os fiz porque tinha a convicção da importância que esse fenômeno representa para a sociedade. Isso não é nenhuma novidade, uma vez que Thomas Arnold, no século XIX já havia observado essa possibilidade na sociedade inglesa da época e pautando-se nessa convicção fundou a Rugby School. Dessa experiência pedagógica resultou a obra Tom Brown’s Schooldays. Hughes foi aluno de Thomas Arnold na escola de Rugby, marco da institucionalização do esporte nas escolas inglesas, e na obra Tom Brown’s relatou de forma romanesca e apaixonada o cotidiano e as preocupações de uma pedagogia pelo esporte. Essa foi uma das obras que inspirou o Barão Pierre de Coubertin a edificar seu ideário olímpico, tema central dessa manifestação.

O estudo do fenômeno olímpico me inspira de diferentes formas, seja por seus aspectos macro que envolve a história, bem como as questões sociais e filosóficas, até seu âmbito mais específico relacionado basicamente à psicodinâmica do atleta e das equipes esportivas. Entendo que reside na compreensão desse continun – sujeito-sociedade – o sucesso de uma intervenção que não é apenas clínica, mas essencialmente social.

Vejo “milagres” sociais serem operados por meio do esporte, e não apenas o olímpico, mas afirmo que é o esporte olímpico que fornece muitos grandes exemplos para que milhões de crianças desenvolvam o desejo do vir a ser. E é nisso que eu aposto minhas fichas, minha energia de vida e meu vigor acadêmico: no estudo do fenômeno olímpico e em suas reverberações em diferentes indivíduos, sejam eles crianças ou adultos, que se refletirão nos movimentos da sociedade de forma mais ampla.

Essa foi a motivação para realizar os projetos de pesquisa Do atleta à instituição esportiva: o imaginário esportivo brasileiro (2001/14054-8) com auxílio pesquisa FAPESP, A função social da derrota entre atletas medalhistas olímpicos brasileiros com auxílio pesquisa concedido pelo CNPq (403212/2003 – edital 06/2003 – Ciências Humanas), Mulheres Olímpicas Brasileiras (2006/61269-3) com auxílio pesquisa FAPESP e meu pós-doutorado na Universidade Autônoma de Barcelona com bolsa concedida pela FAPESP (2004/05625-0), que como pode ser observado nos títulos dos projetos, abordam de diferentes maneiras o fenômeno olímpico.

Além disso, como sugerem os títulos de meus livros, quase todos eles relatando o resultado de pesquisas, o fenômeno olímpico e esportivo é o motor de minha ação autoral. São eles Esporte, educação e valores olímpicos. São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2009. Joaquim Cruz – Estratégias de preparação psicológica: da prática à teoria. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. Medalhistas olímpicos brasileiros: memórias, histórias e imaginário. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. Heróis Olímpicos Brasileiros. São Paulo: Zouk, 2004. RUBIO, K. O atleta e o mito do herói: o imaginário esportivo contemporâneo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

Além dos livros organizados com colegas dos Estudos Olímpicos, Psicologia do Esporte e Educação Física a seguir: RUBIO, K. (Org.); REPPOLD FILHO, A. (Org.); MALUF, R. M. (Org.); TODT, N. S. (Org.). Ética e compromisso social nos Estudos Olímpicos. Porto Alegre: Editora PUC-RS, 2007. RUBIO, K. (Org.). Educação Olímpica e responsabilidade social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. RUBIO, K.; ANGELO, L. F. (Orgs). Instrumentos de avaliação em Psicologia do Esporte. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. RUBIO, K. (Org.) Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. RUBIO, K. (Org.). Psicologia do Esporte: teoria e prática. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. RUBIO, K. (Org.). Psicologia do Esporte aplicada. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. RUBIO, K. (Org.); CARVALHO, Y. M. (Org.). Educação Física e Ciências Humanas. São Paulo: Hucitec, 2001. RUBIO, K. (Org.). Psicologia do Esporte: interfaces, pesquisa e intervenção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. RUBIO, K. (Org.). Encontros e desencontros: descobrindo a Psicologia do Esporte. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

Há anos estamos trabalhando na realização de projetos de educação olímpica em consonância com o pensamento de Pierre de Coubertin. Pensei que a realização dos Jogos Olímpicos no Brasil fosse o momento oportuno e privilegiado para multiplicarmos essas ações que já ocorrem dentro de uma perspectiva de educação não-formal e informal. Nós da área acadêmica temos essa estranha mania de ter fé na vida e acreditar em coisas improváveis ou mesmo impossíveis.

Na última quinta-feira, 28 de janeiro de 2010 tomei contato com um documento do Comitê Olímpico Brasileiro que me informa que devo recolher o livro Esporte, educação e valores olímpicos. Essa notícia além de me surpreender me causou enorme espanto por conta das alegações utilizadas para tal. Conforme o documento “o uso dos termos ‘olímpico’, ‘olímpica’, ‘olimpíada’, ‘Jogos Olímpicos’ e suas variações… são de uso privativo do Comitê Olímpico Brasileiro no território brasileiro.”

Voltamos ao tempo da Inquisição onde apenas os iniciados poderiam fazer parte dos mistérios e os livros e publicações indexados deveriam ser expurgados impingindo aos descuidados o calor das chamas das fogueiras? É sempre bom lembrar que Hitler também fez suas escolhas de obras indexadas e termos permitidos.

O livro Esporte, educação e valores olímpicos foi gestado muito antes do anúncio da candidatura do Rio de Janeiro, uma vez que não tínhamos em nosso país nenhuma obra dedicada aos jovens para  tratar do tema Olimpismo. Criei também um guia didático para uso dos professores em sala de aula apontando como usar o material como tema transversal, aproximando assim nossa tão desrespeitada educação física escolar de disciplinas “nobres” como a língua portuguesa, história, geografia, biologia etc.

Como diria Luther King “I have a dream” e continuarei a tê-lo, independente da ação do COB. Meu sonho continua vinculado ao país que tenho e ao país que desejo ter, e como o esporte pode contribuir para essa realização.

Publicar livros é dever de ofício de pesquisadores, principalmente das ciências humanas, e esse último é mais um entre os muitos que ainda pretendo publicar sobre o tema olímpico. Tenho um livro no prelo sobre as Mulheres Olímpicas Brasileiras. Que faço diante disso? Nomeio o inominável ou deixo que pisem as flores de meu jardim como no poema em homenagem a Maiakovsky?

“[…]

Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

[…]”

Conto com o apoio de todos aqueles que estudam, pesquisam, ensinam e publicam sobre Olimpismo, Educação olímpica, Valores olímpicos, Ideais olímpicos, Imaginário olímpico, os deuses olímpicos não atletas, os heróis olímpicos de hoje e da Antiguidade para que essa forma de censura não se abata sobre nossas produções, para que prevaleça a liberdade de pesquisa e de expressão e para que o conhecimento possa chegar a toda a sociedade, saindo dos círculos restritos da universidade e contribuindo para uma sociedade mais justa e um país melhor.

Se de alguma forma essa notícia também lhe causa perplexidade escreva para carlos.nuzman@cob.org.br, andre.richer@cob.org.br, presidência@cob.org.br manifestando sua opinião.

São Paulo, 29 de janeiro de 2010

 

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